Bem, lembrei-me de quando deixei a casa de meus pais para viver sozinha. Minha mãe, ainda de um tempo bem mais antigo, deixou claro que moça solteira só deixava a casa paterna para se casar e que o lugar da filha que ainda não tinha se casado ou não ia se casar era ao lado dos pais. Argumentei com ela. Disse-lhe que pela lei natural da vida, os pais partem antes dos filhos e que se assim se passasse conosco, eu, que sempre fui pessoa tão sensível, teria muita dificuldade em aprender a viver sozinha. Ela ficou pensativa de um jeito tal como se esta situação nunca tivesse lhe ocorrido, e acabou se rendendo. Embora eu tivesse apenas mudado de casa e não de cidade, nem de país e nem de pais, senti um certo tremor porque palavra de mãe é como uma espada afiada, um descuido e a gente se corta. Mãe quase sempre tem razão. E quando ela falou a frase: Maria Luiza, você me mude o nome se não estiver de volta em dois meses! Aí gelei.
Naquela época, ainda se dizia em tons maliciosos: aquela moça é solteira e mora sozinha. Eu, orgulhosa de quebrar paradigmas, sentia-me empolgada e famosa como a fascinante *Amelia Earhart em seus voos maravilhosos rasgando os céus sobre os oceanos ou como uma pequena feminista que acabou de ser aceita para um importante aprendizado num grupo fechadíssimo de mulheres corajosas. Mas não era bem assim. Uma coisa é como as pessoas nos veem e outra é como somos de verdade. Logo constatei que morar sozinha tinha o ônus e o bônus, como qualquer situação na vida.
Por exemplo, desfrutaria do silêncio tão necessário, poderia deixar minha cama desarrumada pelo dia todo, assistiria televisão até a hora que bem entendesse, e outras vantagens desse tipo. Tudo bem, só que quando caía a noite, eu que sempre fui muito medrosa de tudo, desde assaltantes, baratas e principalmente de fantasmas, bem, eu me sentia desconfortável. Quando o medo era de fantasmas eu deixava as luzes acesas, mas às vezes quando o pavor insuportável me dominava eu corria para a casa paterna. Se o medo era de barata, eu deixava panos de chão dispostos estrategicamente em baixo da porta para bloquear os inoportunos insetos. Para evitar catástrofes em minha cozinha eu almoçava na casa de minha mãe e aproveitava para fazer uma trouxa de roupas mais difíceis de lavar que ficavam por lá. E minha mãe, que nunca teve papas na língua, nem pejo para reclamar do que fosse, dizia: assim é fácil morar sozinha … até eu! E sorria sarcástica e divertida.
Meus primeiros tempos de Amelia Earhart ao morar sozinha foram pueris. Era quase como brincar de casinha e fazer cozidinho de meninas em tijolos imitando fogãozinho. De casinha em casinha fui aprendendo a ser dona de casa, e até bolo de nozes aprendi, olha só! Porém logo compreendi que havia um bilhão de anos luz entre mim e Amelia Earhart. Eu não era corajosa. Não sei não. Será que não era? Segurei a mão de minha mãe quando ela deixava esta vida para entrar nos bulevares celestiais. Encarei fazer o papel de Inês de Castro e de Edipo já com idade para ser mãe de minhas colegas! Amei ser atriz de faz de conta, emocionei-me e emocionei a plateia. Talvez todas as mulheres tenham algo de Amelia Earhart e talvez a própria Amelia Earhart tivesse um pouquinho de medo como todo mundo. Afinal, como dizia Roland Barthes: “tenho medo, logo existo.”
*Amelia Mary Earhart foi pioneira na aviação dos Estados Unidos, autora e defensora do direito das mulheres. Amelia desapareceu no Oceano Pacífico enquanto tentava realizar um voo ao redor do globo em 1937.