O quão longe no tempo pode cada pessoa guardar suas mais ricas e remotas lembranças? Bem, eu me lembro de quando morava na “casa de cima”, como a chamávamos. Minha mãe se referia ao lugar onde morou em Cristina como “a rua de baixo” e eu adoro essas expressões familiares tão originais, tão queridas! Mas não é sobre isso que quero falar. Então, já estávamos na cama, nós os primeiros filhos, os mais velhos, quando minha mãe entrou em nosso quarto para mostrar à tia Odete que nos visitava, como estávamos bonzinhos e bonitinhos em nossas caminhas. Foi quando apontou para mim e disse: ela dorme igualzinho ao pai, com o braço debaixo do travesseiro, já o irmão dorme como o tio, e por aí vai ou por aí ia. É como diziam e como dizemos, o fulano puxou mais ao pai, ou puxou ao avô.
Todas as vezes em que fico recostada em minha cama com meus livros de oração eu me lembro de minha avó com a “Liturgia das horas” ou algum missal, em seu colo. Ela descansava a perna que tinha uma ferida profunda e de quando em quando parava a leitura para coçar em volta da ferida. Não preciso de uma foto para guardar essa lembrança tão preciosa. Ficará impressa em minha mente e em meu coração para sempre. Mas então eu penso: lá estou eu aqui com meus livros de oração exatamente como minha avó. Eles se vão e nós continuamos em seus postos.
E também, fisicamente, vamos ficando como nossos pais. Ah o fulano era tão bonitinho, tão magrinho, agora está o pai escrito, sem cabelo, bochechudo. Ele quando jovem não tinha nada do pai, agora! Nossa! Incrível! Nossos traços vão sendo configurados e reconfigurados até que ficamos como eles. E nós, mulheres, vamos “salvando” em nós os traços de nossas mães.
Um dia, eu voltava do mercado, carregando sacolas, distraída da vida quando parei em frente a uma clínica de vidros espelhados. Mulher vaidosa que sou, não resisti ao impulso de me ver refletida nos vidros. O fato é que me achei incrivelmente parecida com minha mãe, parecia vê-la surgindo das brumas do tempo. Já ouvi dizer que se as mulheres quiserem saber como serão no entardecer da vida, basta olhar para suas mães. Terão um retrato fiel de sua imagem no futuro. Mas não é só o físico, na verdade é muito mais. Parece vir de dentro, são os modos, os cacoetes, o jeito de sorrir ou falar. São muitos os detalhes, antes escondidos, como se às filhas estivesse destinada a missão de ocupar o lugar do corpo e alma de suas mães.
E não paramos por aí. Vamos empregando as mesmas expressões que usavam. Quando minha irmã me conta algo que acho descabido, eu digo, “essa é de gloriosa” como minha mãe dizia sempre. Ou quando duvido que algo seja feito ou cumprido, por exemplo, de hoje em diante, vou ser assídua na ginástica. Aí eu digo pra mim: “vai que frange”. Era assim que minha mãe falava, como quem queria dizer: “vai nada”.
É com emoção que constato que de tudo que já escrevi na vida, de todos os livros, crônicas, contos e poemas, eu posso seguramente afirmar que 80% é sobre minha mãe. Tá certo. Mãe é mãe. E como dizia Adélia Prado: “Quero minha mãe”.