Um pensamento de Gabriel Cavalcante Cunha
Há alguns meses, foi-me proposta uma sugestão de exercício que consistia em escrever uma carta para mim mesmo, apresentando-me e dizendo quem eu sou. Não consegui elaborar a carta naquele momento. Eu simplesmente não consegui encontrar com clareza o que escrever naquela semana. Isso não me deixou irritado, tampouco descontente. Muito pelo contrário! Isso me motivou a dar início a um estudo que intitulei de “arqueologia de mim mesmo”. O objetivo que estabeleci para mim era basicamente compilar, organizar e sistematizar todos os registros históricos, como fotos, vídeos, escritos, provas escolares, documentos, pinturas, etc. O método era o de ir fazendo anotações de todas as recordações que surgissem ao serem estimuladas pelas fontes históricas.
Quando fui dar início a esse propósito, preparei-me para a guerra que eu sabia que seria esse estudo. Coloquei máscara, separei o álcool gel… parecia até que eu ia sair na rua em tempos de pandemia. Aí, quando comecei a mexer em todas aquelas coisas, o que primeiro veio à mente foi:
Nossa, isso aqui está tão bagunçado! Parece tudo fragmentado, separado, desconexo! Será que no meu interno também está assim?.
Daí, surgiu uma imagem muito forte para mim durante esse estudo. Parecia que minhas recordações da infância e da adolescência estavam espalhadas num confuso arquipélago. Longe umas das outras, sem um fio minimamente lógico que as encadeasse. Foi justamente nesse ponto que achei a causa de não ter conseguido escrever a carta: imperava no meu ser uma grande fragmentação. Entre as lembranças, existiam grandes lacunas que dividiam o meu ser! Pessoas, lugares, demonstrações de afeto de diferentes momentos ficavam misturadas na mesma ilha.
Tendo conquistado essa observação, pude avançar no estudo. Revisando passagem por passagem e anotando tudo. Em poucos dias, comecei a perceber um novo elemento: algumas passagens eram mais fortes, dotadas de maior presença e cheias de vida, enquanto outras se mostravam extremamente frágeis e fracas. Não tardou para que eu percebesse a diferença entre os momentos nos quais vivi voltado para dentro de mim e aqueles em que a memória foi totalmente construída a partir do externo. Era o que diferenciava as energias! Isso foi deixando um pouco mais claro para mim o que se esvai e o que de fato fica guardado no meu ser — e começou a apontar em uma direção. Para atingir o objetivo que havia estabelecido, eu teria que juntar, unir e prender tudo aquilo, até finalmente chegar a me compreender.
Nessa fase, as anotações foram muitíssimo úteis, na medida em que eu pude correlacioná-las cronologicamente e dispor de todo o material em ordem lógica. Desse modo, eu pude vislumbrar entre as mudanças, as conquistas e os infortúnios, um fio que perpassa por todos aqueles seres que fui, o ser que sou e aquele que serei.
Através desse estágio de compreensão, pude começar a ver de maneira una, indivisível, toda a minha vida. Nossa! Como já vivi tanta coisa nesses 19 anos! Parecia uma imensidão de vida quando colocada integralmente junta. Com isso, conquistei também uma pequena porção de liberdade, pequeníssima, na verdade, mas cujos efeitos possuem elevada importância para mim: poder começar a traduzir na linguagem escrita os primeiros rascunhos de quem eu sou.