Há meses e meses, vive-se um delicado contexto sanitário global, com diversas crises e em um cenário triste, avassalador e desafiador.
Em solo jurídico, de igual modo, os desafios somente se agigantaram.
É que sistemas jurídicos complexos como o brasileiro, se viram grandemente afetados pelos efeitos pandêmicos em que, não rara às vezes, soluções tomadas foram adjetivadas pela interpretação jurídica. Neste sentido, por exemplo, os debates sobre o uso de máscaras, legitimidade concorrente dos entes federativos na política de enfrentamento, a questão delicada do isolamento de serviços ditos como “não essenciais”, etc.
Assim, os dilemas sociais vividos foram visitados pela ciência jurídica em diversos aspectos, não somente pelo desenfreado ativismo judicial brasileiro, mas também pela interlocução dos cenários políticos, da economia, sociologia e outros com o importante papel do Direito na construção de uma interpretação social maior.
Em específico, uma jornada também dura e difícil no cenário das relações previdenciárias, aliás, em que pouco ou quase nada há o que se comemorar.
Ocorre que o sistema previdenciário brasileiro neste duro e triste período travou, ou, quase pouco funcionou.
De fato, ainda experimentando todas as promessas não cumpridas e propulsoras da denominada “A Nova Previdência”, o que se viu foi uma volumosa procura dos serviços previdenciários, notadamente do regime geral (RGPS), o maior e mais complexo de todos, contudo, em 2021 o que se percebeu foi o colapso do sistema.
Agências fechadas por todo o país, ausência de contingente funcional para atender a população, ausência de novos concursos, sistema digital confuso e instável, intensa atividade normativa, etc., foram alguns do variados problemas que acabam por desnaturar a relevante atividade-fim do INSS.
Associa-se a este cenário o maior de todos os problemas, quer seja, a fila do INSS e seu avolumado estoque de pretensões não atendidas não somente dentro do prazo regulamentar, mas dentro de qualquer prazo, estando aqui o epicentro do caos previdenciário que se instaurou e sem qualquer prognóstico de melhorias.
Vale aqui o registro de um recente estudo estatístico deste corrente e vivo problema:
“A fila de espera para aposentadoria do INSS chegou a 1,8 milhão de requerimentos no mês de agosto. Esse número alto é registrado desde 2019, variando entre 1,7 milhão a 1,9 milhão. A fila de espera do INSS é um dos grandes problemas do instituto. A causa é a falta de servidores, desatualização do sistema e aumento dos pedidos. Além disso, a reforma da previdência fez com que o sistema precisasse passar por modificações nas regras para a concessão dos benefícios. Porém, boa parte dos pedidos que estão na fila de espera do INSS já ultrapassaram esse prazo. Dos 1,8 milhão de requerimentos, 420.996 aguardam alguma documentação do segurado para concluir a análise. Outros 1.407.561 pedidos são os que necessitam de análise do instituto”. (https://fdr.com.br/2021/12/01/fila-do-inss-impede-milhoes-de-receberem-ajuda-como-acelerar-o-processo/)
E este cenário continua sendo perturbador, agravado pela pandemia que está longe de se findar, mas que coloca os trabalhadores brasileiros e os demais sujeitos previdenciários visivelmente em um processo de exclusão, em outras palavras, à margem da proteção constitucional e institucional que justifica a própria existência de uma previdência qualificada como “Social”.
Como se não bastasse a insegurança política de sua gestão, vale dizer, confusa e efêmera acerca de um confiável e esperado plano de atuação.
O que se viu essencialmente foi a pauta previdenciária relegada ao debate econômico, estatístico, da numerologia, como se o contexto social nacional fosse uniforme e homogêneo.
Cite-se a ausência de um Ministério da Previdência e a figura central de um Ministro da pasta, ausente ainda o debate qualificado com os setores sociais, a fim de equalizar com debate técnico os dilemas previdenciários a que o país necessita.
Também, a ausência das complementares regras do texto constitucional reformador, em que no seu bojo idealizou-se a edição de normas complementares para a funcionalidade direta do novo modelo previdenciário, contudo ainda sem visitação parlamentar.
De igual modo, a continuidade do debate reformador com a integração de outras categorias que, apesar de prometido, sequer houve o início das discussões.
Em linhas gerais, um caos institucionalizado, sem projeto de futuro e perspectivas de melhorias alguma, majorando sobremodo a correção do sistema via judicialização.
Lado outro, a esperança ainda persiste, a ideologia constitucional dos direitos sociais permanece viva e constitucionalmente programada a despeito da jornada de 2021 pouco contribuir a respeito, merecendo, a bem da verdade, o esquecimento de todos.
Sérgio Henrique Salvador
Mestre em Direito (FDSM). Pós-Graduado pela EPD/SP e PUC/SP. Professor Universitário (graduação, pós-graduação, cursinhos preparatórios e de extensão/atualização jurídica). Escritor com mais de 10 livros publicados em várias editoras. Conselheiro da OAB/MG (23ª Subseção). Advogado em Minas Gerais. Membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica. Integrante do comitê técnico da Revista SÍNTESE de Direito Previdenciário. Integrou a comitiva de pesquisadores brasileiros no I Congresso Internacional de Seguridade Social da Faculdade de Direito de HARVARD nos Estados Unidos em agosto de 2019.