Em meio ao recente pacote de profundas alterações no modelo previdenciário nacional, notadamente em virtude das novidades da Emenda Constitucional n.103 de novembro de 2019, a triste ocorrência mundial da pandemia da Covid-19 acaba por endossar, por duras vias, a ideologia protetiva a que se escolheu no horizonte de 1988.
Tristemente, a assolação mundial por esse novo tipo de coronavírus, obrigatoriamente, faz a sociedade rever seu modo de vida em todos os cenários, tanto pelo enfoque social, como também pela atuação estatal dos gestores, chamados a uma emergência política que vise criar meios e modos de enfrentamento dessa dura batalha.
Assim, nos sistemas jurídicos constitucionais, em formato democrático, republicano e apoiado em premissas de bem-estar social, como o brasileiro, a chegada da pandemia abalou sistemicamente a estrutura interna, tanto política, quanto social, além da econômica e jurídica, em que tudo e todos passaram a envidar sacrifícios, renúncias e planejamentos em prol de um bem maior e comum, num gesto de solidariedade em meio a vulnerabilidade social.
E o cenário pandêmico se agrava e muito em sistemas políticos e jurídicos de notórias divergências, desigualdades e da existente generosidade de um conteúdo constitucional programático como o de piso, mostrando as lacunas sociais, a fragilidade estatal em diversos trajetos e a necessidade de que há muito o que se aprimorar.
Em meio a esse caos sanitário mundial, as bases de abrigo, proteção e acolhimento social nas áreas sistemicamente trilhadas pelo texto constitucional se revelam como de crucial e fundante importância ao ambiente atual de um autêntico desespero a que todos restaram acometidos, involuntariamente.
Logo, justificativas sobram e não faltam para defender, invocar e acreditar efusivamente no plano máximo protetivo a partir de 1988, essencialmente, ao sistema da Seguridades Social.
Em linhas gerais, sua previsão abstrata em três grandes segmentos, vale dizer, pela Assistência, Previdência e Saúde, se justifica por diversos motivos, mostrando o acerto institucional de criação deste pacto em prol dos necessitados, dos segurados e dos assistidos. Portanto, as razões de sua defesa, as premissas para a manutenção e os desejos de aprimoramento encontram uma agigantada voz social em tempos de crise da pandemia da Covid-19.
Em momentos como o presente, as estruturas de proteção representam essencialmente o estado social protetivo, comprovando a previsão constitucional, seus motivos de existência e a racionalidade dos atores envolvidos para dar concretude aos ideais firmados.
No campo previdenciário, o momento vivido comprova que a Previdência Social é capaz de sustentar seus personagens com medidas desburocratizadas e flexíveis ao acesso de certos benefícios, notadamente àqueles que envolvem incapacidade ao trabalho e outros de natureza assistencial.
Para tanto, medidas provisórias, leis, decretos e diversas portarias internas hão de dar força ao sistema previdenciário nacional, mesmo no cenário de crise, colocando em prática o socorro a seus abrigados em situações de emergência e em situação de risco social.
De fato, antecipação de valores, auxílio-emergencial, protocolos remotos, flexibilização na análise, perícia distância, etc., demonstram que o aparato previdenciário arquitetado apregoa proteção social em tempos de crise, com acessibilidade e atendimento, tal qual direcionou o princípio constitucional de “universalidade da cobertura e do atendimento”. (194, § único, I, CF/88)
Wagner Balera, em conhecida lição registra que:
“A todos é reservado igual lugar, aquele que lhe confere cobertura e atendimento segundo a respectiva necessidade, na estrutura institucional da proteção social. Eis a razão de termos afirmado que a universalidade se constitui na específica dimensão do princípio da isonomia (garantia estatuída no art. 5º da Lei Maior), na Ordem Social. É a igual proteção para todos. São dois os modos pelos quais se concretiza a universalidade. De um lado, ela opera implementando prestações. De outro, ela identifica os sujeitos que farão jus a essas prestações. A universalidade da “cobertura” refere-se às situações da vida que serão protegidas. Quais sejam: todas e quaisquer contingências que possam gerar necessidades. Já a universalidade do “atendimento” diz respeito aos titulares do direito à proteção social. Todas as pessoas possuem tal direito”. (BALERA, Wagner. Sistema de seguridade social. São Paulo: LTr, 2000. p. 18.)
E os desafios colocados são dos mais variados, ao mesmo tempo em que a fragilidade do sistema é exposta, sob outro ângulo, sua relevância social se apresenta de forma fundante, incontroversa e mais do que necessária, demonstrando que as razões de criação constitucional da proteção previdenciária ganhou confirmação coletiva, ainda que em momentos penosos como o presente.
Também, mostrou a necessidade de defender e cuidar de um sistema social que tutela, cuida e auxilia seus partícipes em cenários de crise, evidenciado que a busca deve ser pela efetivação dos direitos e não somente à retórica da normatividade abstrata.
Para Bobbio, em conhecida passagem:
“O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. (…) Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garantí-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”. (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.24-25)
Esse o cenário visualizado em tempos de crise, apto e comprovar o relevo da política de proteção previdenciária de seus abrigados, mormente na situação de vulnerabilidade coletiva, sendo possível invocar a Previdência e seu plano de prestações a fim de que sua extensão não fique somente em palavras, mas encontre no dia-a-dia, justificativas para sua existência.
Aqui o desafio e a esperança por dias melhores, com o alcance das pilastras previdenciárias a seus destinatários, de forma acessível, justa e rápida para a efetivação de direitos programados em larga escala, mas que em tempos de crise, almejam proteção plena e efetiva, tal qual se sonhou no Texto de 1988, também para tempos de crises.
Sérgio Henrique Salvador
Mestre em Direito (FDSM). Pós-Graduado pela EPD/SP e PUC/SP. Professor Universitário. Escritor. Conselheiro da OAB/MG (23ª Subseção). Advogado em Minas Gerais. Membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica.