Em seu bojo, traz a proposta de Emenda Constitucional n.6 de 2019 um pacote de diversificadas alterações ao já complexo sistema previdenciário nacional, como se de uma hora para a outra, o texto proposto e suas poucas disposições pudesse exaurir e a contento os anseios de toda comunidade envolvida.
Assim, propostas sobre os regimes previdenciários existentes, novos parâmetros contributivos, regras para a transição, alteração e extinção de prestações, mudanças até mesmo em premissas do processo judicial previdenciário, e outras, ganham ares de problematização parlamentar que se vale de premissas dogmáticas, exclusivamente econômicas, além de estarem dissociadas, em muitas vezes, da força normativa constitucional.
Dentre as diretrizes propostas, tem-se a grande novidade em se tentar inserir no solo pátrio o regime previdenciário da “capitalização”, em contraponto ao conhecido e existente regime da “repartição simples”.
Aqui, talvez, um dos pontos mais polêmicos desse intricado debate, agravado pela rapidez da tramitação, da ausência de um tecnicismo de qualidade e da democrática participação de todos, premissas essas, infelizmente distantes de verificação prática.
Ao contrário, mesmo em cenários de alta indagação e de pontuais tópicos polêmicos em demasia, é que toda a sociedade civil deveria contribuir.
Essa a leitura substancial da gestão partilhada ou “quadripartite” do artigo 194, VII da Constituição Federal e que não deixa dúvidas sobre seu real sentido, sem comportar dilações, negociações ou relativizações.
Lenio Streck observa nesse cenário que:
A Constituição não é simples ferramenta; não é uma terceira coisa que se interpõe entre o Estado e a Sociedade. A Constituição dirige; constitui. A força normativa da Constituição não pode significar a opção pelo cumprimento ad hoc de dispositivos menos significantes da Lei Maior e o descumprimento sistemático daquilo que é mais importante – o seu núcleo essencial fundamental.[1]
Logo, aqui notória é uma indesejável ofensa ao texto constitucional, por não franquear aos atores sociais efetiva participação na criação, gestão e debate do modelo reformador apresentado, nascido de maneira unilateral e a revelia de seus principais envolvidos.
Portanto, o debate a respeito ainda se agrava com essas nuanças, quando em seu bojo, o pacote proposto traz uma abrupta mudança de regimes de financiamento, sem um acurado estudo a respeito e sem clarear seus meandros da estrutura do que se pretende e o que ocorre com o objetivo da se implantar o sistema de capitalização.
Eis os dispositivos dessa proposição:
Art. 40. […] § 6º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão para o regime próprio de previdência social o sistema obrigatório de capitalização individual previsto no art. 201-A, no prazo e nos termos que vierem a ser estabelecidos na lei complementar federal de que trata o referido artigo. […] Art. 201-A. Lei complementar de iniciativa do Poder Executivo federal instituirá novo regime de previdência social, organizado com base em sistema de capitalização, na modalidade de contribuição definida, de caráter obrigatório para quem aderir, com a previsão de conta vinculada para cada trabalhador e de constituição de reserva individual para o pagamento do benefício, admitida capitalização nocional, vedada qualquer forma de uso compulsório dos recursos por parte de ente federativo.[2]
Aqui, pois, um nevrálgico ponto, novidade ao sistema existente, sem falar de que o recado de que como será estruturado no futuro sequer está nítido nos dispositivos da proposta, onde escolhido que foi o caminho de uma regulamentação futura por lei complementar.
Essencialmente, a diferenciação ou o que se pretende é de sensível mudança no modelo existente da proteção previdenciária, pois, nos ares da capitalização o ente estatal se retira e tão somente o trabalhador irá contribuir para si, criando uma conta individual para que no futuro, após cumprir determinados requisitos, até então desconhecidos pela proposta, poderá invocar o abrigo previdenciário e certamente a menor, incompleto e de extremada fragilidade.
Capitalizar um sistema previdenciário é o mesmo que afastar qualquer intervenção estatal ou ainda patronal/empresarial do processo, deixando o trabalhador isolado em um regime incerto e que, curiosamente, teve pouco êxito nos poucos países que o adotaram.
Assim, essa premissa proposta fere fulcralmente o âmago da estruturação criada para o bem-estar, justiça social, integração, inserção, participação e distribuição, aspectos esses inegociáveis e naturalmente erigidos a partir do paradigma de 1988 que apregoou sonhos a serem implementados, com solidariedade social e equidade na participação de todos.
Nesta direção, Luis Roberto Barroso descreveu que:
É inegável que a Constituição de 1988 tem a virtude de espelhar a reconquista dos direitos fundamentais, notadamente os de cidadania e os individuais, simbolizando a superação de um projeto autoritário, pretensioso e intolerante que se impusera ao País. Os anseios de participação, represados à força nas duas décadas anteriores, fizeram da constituinte uma apoteose cívica.[3]
A bem da verdade, muitos desses anseios sequer ganharam ares de implementação, viabilização, mas a inspiração e o planejamento de consecução futura não merecem desprezo, sob pena de desnaturar conquistas e os valores consolidados ao longo dos anos.
Neste contexto, a repartição simples se justifica e se legitima, tendo em vista que envolvida por uma importante solidariedade social que requer a participação de todos os atores sociais, para que contribuam na construção coletiva de implementação das premissas do bem-estar social.
Negar tal evidência é desprezar todo um acervo de metas valorativas a que a dimensão constitucional dispôs, retrocedendo e muito as conquistas, sobretudo acerca da efetivação de direitos fundamentais de onde os direitos previdenciários se veem inseridos.
Paulo Bonavides a esse respeito destaca que:
Nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana. Quando hoje, a par dos progressos hermenêuticos do direito e de sua ciência argumentativa, estamos a falar, em sede de positividade, acerca da unidade da Constituição, o princípio que urge referir na ordem espiritual e material dos valores é o princípio da dignidade da pessoa humana.[4]
Inegavelmente, no mínimo, o ideário da capitalização merecia longa e clara discussão, com a divulgação de todos os seus passos, mediante um estudo responsável, técnico e demográfico que demonstre, com clareza, a segurança de que uma efetiva e acessível proteção previdenciária, nos moldes do desejado pelo Constituinte Originário, também ocorra a seus aderentes e que garantias desse desejado modelo sejam criadas para o abrigo de seus participantes.
Certo, que experiências neste sentido demonstram totalmente o contrário, um distanciamento do ente estatal, o isolamento dos trabalhadores, a corrosão dos benefícios quando deferidos, ausência de garantias e outros notórios problemas desse modelo de financiamento.
Ademais, o modelo brasileiro é demasiadamente complexo, com grandes divergências pelos mais variados fatores, como a extensão geográfica, expectativa de sobrevida, acesso ao mercado de trabalho, níveis de educação e outros fatores.
O que está nítido é que ocorrerá, se assim for aprovado, uma grave mudança do próprio perfil do Estado na Constituição, talvez uma das mais graves, considerando que tem entre seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana”; “os valores sociais do trabalho” (art. 1º, III e IV, CF88) nos seus objetivos “construir uma sociedade justa e solidária”, além de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, I e III, CF88).
Aqui, tem-se a principal intenção de se estabelecer um sistema previdenciário de repartição, ou seja, dividir responsabilidades contributivas e universalizar o acesso aos benefícios e serviços da Seguridade Social para populações urbanas e rurais, com equidade e custeio diversificado.
A bem da verdade, se o modelo de capitalização for aprovado um novo Estado surgirá acerca dos cuidados com a previdência de seus cidadãos, por exemplo, visualizará a distância toda a miserabilidade alheia advinda das vicissitudes da vida e do mercado de trabalho e nada poderá fazer, não poderá buscar a defesa da dignidade dessa pessoa, se não tiver aderido a nenhuma previdência privada, não poderá dar o devido valor ao trabalho do indivíduo, se não tiver aderido a nenhuma previdência privada.
Ocorrerá, desse modo, o predomínio de uma sociedade nada justa e nada solidária, despreocupada em erradicar pobreza, as desigualdades e marginalização, estando juridicamente vivo, mas na sua essência, desprovido de substancialidade constitucional e separado dos atores sociais que serão figuras meramente contributivas, sem contrapartida estatal alguma.
Também, que as experiências foram desastrosas a respeito da implantação do regime de capitalização, tendo os aderentes aposentados desse sistema vivendo em explícitas dificuldades, neutralizando por completo o fundante vetor da dignidade da pessoa humana.
Um recente e primoroso estudo da Universidade de Goiás trouxe as seguintes informações a respeito:
O regime de capitalização não protege o trabalhador no período de desenvolvimento das atividades laborais. O INSS, por exemplo, protege o trabalhador diante de uma série de eventos que podem colocar em risco o desenvolvimento de suas atividade produtivas. Apenas em dezembro de 2018 foram destinados 2,5 bilhões de reais para cobertura de benefícios como auxílio doença, auxílio acidente, auxílio-reclusão, aposentadoria por invalidez, salário-maternidade, além dos auxílios acidentários, entre outros. Esse conjunto de benefícios representou 5,8% do valor total gasto, em dezembro de 2018, do INSS. É justo indagar, diante desse contexto, se o sistema de capitalização individual protegeria os trabalhadores no período laboral? É justo presumir, diante da desoneração dos empregadores, que essa reforma da previdência privilegia o capital em detrimento do trabalho.[5]
Andras Uthoff, consultor do Instituto “Igualdad”, economista e professor da Universidade do Chile, testemunha e adverte a este respeito que:
Apesar dos subsídios estatais, 80% das aposentadorias pagas no Chile estão abaixo do salário mínimo e 44% estão abaixo da linha da pobreza. O sistema fracassou e seria uma completa loucura implementá-lo no Brasil.[6]
Associa-se ainda que as poucas experiências internacionais a respeito da capitalização fracassaram, não existindo um modelo hígido sequer que possa ser parâmetro de consecução em solo pátrio, terreno, aliás com notórias rachaduras (divergências) de toda ordem.
Poderia sim defender a proposta, se objetivamente clara, responsável e tecnicamente comprovadora de uma efetiva política de inserção, integração e proteção previdenciária, nos exatos termos do que o horizonte de 1988 e o constitucionalismo do bem-estar procuram retratar.
Em sentido oposto, o desejo desta mudança nada mais servirá, senão para capitalizar direitos fundamentais, arduamente construídos e arquitetados, que requer o esforço coletivo, solidário e de todos os atores sociais no ciclo de sua defesa, a fim de que as metas valorativas de um povo não se esvazie, no mesmo contexto de esvaziamento que qualifica a capitalização.
[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermeneutica e Teorias Discursivas da possibilidade de respostas corretas ao direito. 3 ed. rev. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.112.
[3] BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 8.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 41.
[4] BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 233.
[5] ARRAIS, Tadeu Alencar. Pequeno atlas da tragédia previdenciária brasileira[recurso eletrônico] / Tadeu Alencar Arrais, Juheina Lacerda Viana. – Goiânia: IESA : Gráfica / UFG, 2019.
Dr. Sérgio Henrique Salvador é Mestre em Direito (Constitucionalismo e Democracia) pela FDSM (Capes 4). Pós-Graduado em Direito Previdenciário pela EPD/SP e em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Conselheiro da 23ª Subseção da OAB/MG. Professor Universitário. Escritor. Membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica. Advogado em Minas Gerais. Conheça a coluna “Direitos Previdenciários”.