Por Ricardo Leonel da Silva[1] Sergio Henrique Salvador[2]
A origem da vertente reflexão reside, em grande parte, na prática cotidiana do exercício da advocacia previdenciária e assistencial, em que se depara com incontáveis negativas de concessão do BPC – Benefício de Prestação Continuada da LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), que embora seja de natureza assistencial, é gerido pelo INSS – Instituto Nacional do Seguro Social, mas indeferidos ou cessados em larga escala, sob fundamento exclusivo de superação da renda máxima per capita do grupo familiar ao qual pertence o necessitado, sendo este critério, objetivo e requisito legal.
Neste sentido, a constatação da fragilidade deste pressuposto objetivo, adotado pelo legislador infraconstitucional como forma de conceder ou restringir direitos sociais, determina a necessária exploração da temática ora invocada, flagrante o cometimento de equívocos que excluem da proteção estatal, pessoas em inequívoca necessidade de amparo em virtude do assolamento pelas inúmeras adversidades inerentes ao cotidiano socioeconômico nacional.
O tema, aliás, em momento de grande adversidade imposto pela pandemia do coronavírus, é uma possibilidade de se refletir a respeito do tolhimento na efetivação de direitos sociais, tutelados pela Carta Magna de 1988, função da mitigação, pelo gestor público, em muitos casos com a conivência do próprio Judiciário da aplicação das políticas públicas mediante a adoção de requisitos inconstitucionais, invariavelmente, sob a retórica da reserva do possível.
A discussão sugerida permite averiguar a justeza dos critérios utilizados para aferição das condições de miserabilidade e hipossuficiência adotados pelos profissionais do serviço social, pelos gestores do benefício e, em última ratio, pelo próprio Judiciário que, em muitos casos, tangenciam o senso comum, balizando seus relatórios e fundamentos decisórios na mera aparência do necessitado, na renda familiar auferida e na posse de algum bem, como se os aspectos materiais, por si, fossem capazes de elidir sua vulnerabilidade no caso concreto.
Neste prisma, esta é uma possibilidade de irradiação de preceitos constitucionais e tentativa de inculcamento de novos paradigmas, como forma de contribuição para a comunidade acadêmica, enquanto subsídio para discussões na formação dos futuros profissionais que estarão envolvidos na implementação de políticas públicas, concessão de benefícios sociais e do próprio julgamento de divergências, e também, com o objetivo de consolidação da garantia fundamental de exercício dos direitos sociais através da busca pela eficiência do Serviço Social, da gestão pública e do próprio Judiciário, visando propósito maior, o de concretização da justiça social.
Registre-se que entendimentos jurisprudenciais, inclusive já pacificados pela Suprema Corte, defini que a miserabilidade e, consequente hipossuficiência, devam ser aferidas no caso concreto em observância à particular situação do desamparado, são desrespeitados diuturnamente em decisões judiciais monocráticas e, de forma surpreendente, pelos próprios agentes do serviço social da autarquia previdenciária.
Assim, entende-se que a discussão dessa temática por toda a comunidade acadêmica, pelos operadores do serviço social e dos direitos sociais e pelos operadores do direito seja de grande relevo, por explorar variável responsável por acentuada restrição à difusão e à concessão de direitos sociais, em especial do BPC, em afronta aos comandos constitucionais e aos objetivos desta República.
Em destaque, o Benefício de Prestação Continuada – BPC regulado pela Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, Lei 8.472/1990, caracterizado pela garantia constitucional de proteção social do Estado aos cidadãos, idosos acima de 65 anos de idade, às margens da cobertura previdenciária, típica do seguro social e que depende obrigatoriamente de contribuição, e aos deficientes, em ambos os casos, quando em situação de vulnerabilidade qualificada pela miserabilidade.
Dentre os principais objetivos desta proposta ressalta-se a ponderação da discussão quanto a adoção do requisito legal utilizado para aferir a miserabilidade, a partir da percepção de renda máxima per-capita de ¼ (um quarto) do salário mínimo, conforme disposto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) ou ½ (meio) salário mínimo, como ventilado em proposta legislativa vetada recentemente pelo executivo para a concessão do BPC – Benefício de Prestação Continuada, critérios objetivos que não se coadunam com essa caracterização de miserabilidade ou estado de necessidade, e que não estariam, portanto, aptos a condicionar a concessão ou restrição desse direito social.
Em um país de excluídos, com predominância do trabalho informal, o que fora surpreendentemente demonstrado pelo expressivo volume de concessões do auxílio emergencial durante a pandemia do coronavírus, a partir de 2020, ainda que desconsiderados os casos de adesão irregular e assolado pelos altíssimos índices de desemprego, fica patente a fragilidade a que estão expostos grande parte dos brasileiros “invisíveis”, muitos ditos informais que, certamente, poderão carecer da proteção social em algum momento de suas vidas, determinando a relevância desta discussão.
De início cabe ressaltar que a adoção do critério objetivo, ora combatido, regido por normas infraconstitucionais, sob hipotética forma de comprovação do requisito de miserabilidade e condicionante da concessão de direitos sociais às pessoas necessitadas, fere o princípio da isonomia material, tutelado pela Magna Carta de 1988, no mesmo compasso da igualdade material aristotélica em que, aos iguais devem ser dispensados tratamento igual e, aos desiguais, tratamento desigual, na razão desta desigualdade.
Neste sentido, leciona o grande mestre Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Rezam as constituições — e a brasileira estabelece no art. 5º, caput — que todos são iguais perante a lei. Entende-se, em concorde unanimidade, que o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia. O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. […] A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes”. (MELLO, 1998, p.9). G.N.
Observa-se que, para além do descompasso com os princípios constitucionais vigentes, principalmente da isonomia, mas também da razoabilidade e proporcionalidade, verifica-se a afronta aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, esculpidos no artigo 3º da Constituição Federal de 1988, em especial no inciso IV, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. (BRASIL, 1988).
O combatido requisito discriminador acaba por diferenciar a vulnerabilidade suportada pelo necessitado, função de particularidades que não elidem a circunstância de fato, apenas utilizam contornos para diferir situação de presunção de miserabilidade e estado de miserabilidade.
Ora, as diversas situações de adversidades socioeconômicas em um país sem rumo, adepto ao empirismo e as táticas alicerçadas na tentativa e erro de um número absurdo de excluídos, podem produzir o mesmo resultado de vulnerabilidade em pessoas com situações e condições particularmente distintas, pertencentes aos diversos estratos sociais, como por exemplo, a perda da capacidade laboral, distúrbios físicos e psíquicos, acidentes, dentre outros.
Aqui, uma breve reflexão, meramente exemplificativa, como forma de constatar didaticamente a possibilidade de haver pessoas com situações e condições distintas, tornando-se vulneráveis pelo mesmo tipo de evento adverso.
Inicialmente, pode-se imaginar um trecho de uma estrada interestadual, sem sinal de telefonia móvel, com tráfego esporádico, em que, por volta de duas horas da madrugada, um condutor sozinho, com seu veículo popular, quinze anos de uso, sem seguro, sem pneu estepe e sem portar aparelho celular, depara-se com o estouro de um dos pneus e encosta seu veículo às margens da rodovia, ficando alarmado e imaginando que, naquelas condições, não resta o que fazer a não ser contar com a sorte, em típica situação de vulnerabilidade.
Em simetria, noutra situação hipotética, nessa mesma estrada e nas mesmas condições, uma condutora também só, transitando com seu veículo SUV, comprado há menos de dois meses, praticamente zero quilômetro, coberto por seguro premium contratado junto a uma seguradora famosa do ramo, e de posse de seu smartphone de última geração, porém, inútil para comunicação, pois, sem sinal de voz ou de dados, também se depara com o estouro do seu pneu, constatando que, após rápida leitura do incrível manual envolto em capa dura e veludo, em consonância com o luxo do seu veículo, não possui força física para retirar o pneu estepe, de vinte e duas polegadas e quase quarenta quilos, do suporte que fica embaixo do veículo.
Igualmente ao primeiro condutor, apesar de objetivamente possuírem condições e viverem situações diversas, à condutora restará encostar seu veículo às margens da mesma estrada e suportar, certamente, também alarmada e subjetivamente, o mesmo desolamento, a mesma situação de impotência do primeiro exemplo e, igualmente, contar apenas com a sorte, em flagrante e equiparada situação de vulnerabilidade.
Em mesmo plano, a vulnerabilidade social não decorre estritamente da presunção de absoluta miserabilidade do necessitado, mas da particular situação de afetação das condições que determinam sua possibilidade de sobrevivência com dignidade e bem estar social, em determinado momento de adversidade.
Neste contexto, há que se diferenciar a situação de miserabilidade do estado de miserabilidade, neste último, passível de ser experimentado por qualquer pessoa em determinado momento da vida, em virtude de uma ou de diversas situações de adversidade somadas e capazes de reduzir sua capacidade de autossustentação.
Pensando nas inúmeras situações de adversidades que podem se abater sobre as pessoas, o Constituinte Originário projetou e concebeu um grande escudo protetor, a Seguridade Social, conferindo proteção constitucional garantida através da efetivação de ações integradas do Poder Público nas áreas da Saúde, Previdência Social e Assistência Social.
Do texto constitucional extrai-se que: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. (BRASIL, 1988).
Com a promulgação da Constituição de 1988, houve a nítida separação entre Direito da Seguridade Social e Direito do Trabalho, ao se trazer para o bolo da Lei Maior um capítulo sobre a Seguridade Social (arts. 194 a 204). Na atual Constituição, a Seguridade Social abrange a saúde, a previdência e a assistência social. (MARTINS, 2016. p.25).
Wagner Balera aborda a extensão desta engenharia constitucional:
Queremos dizer, quando afirmamos que o objetivo do Sistema Nacional de Seguridade Social se confunde com o objetivo da Ordem Social (e, diga-se, igualmente, com o objetivo da Ordem Econômica, na voz do caput do art.170), que esse valor – a justiça social – uma vez concretizado, representa o modelo ideal de comunidade para a qual tende toda a concretização constitucional do sistema. (BALERA, 2009. p.19).
Fábio Zambitte Ibrahim também traz o seguinte conceito:
Na verdade, a seguridade social pode ser conceituada como a rede protetiva formada pelo Estado e sociedade, com contribuições de todos, incluindo parte dos beneficiários dos direitos, no sentido de estabelecer ações positivas no sustento de pessoas carentes, trabalhadores em geral e seus dependentes, providenciando a manutenção de um padrão mínimo de vida. (IBRAHIM, 2015. p.06).
De forma sumária, a Saúde é para todos e sem qualquer requisito; a Assistência Social que também é para todos, porém, mediante o cumprimento de alguns requisitos, dentre os quais a condição de vulnerabilidade social aferida dentre outros, pelo critério objetivo do pressuposto de miserabilidade, objeto do debate neste ensaio e a Previdência Social, que depende de contribuição, sendo portanto, direito de um seleto grupo de segurados, filiados aos respectivos regimes previdenciários.
Antes, porém, de desenrolar a tese sobre a adoção do critério objetivo para aferição de direito subjetivo, importante reflexão deve ser exarada sobre nossa conjuntura social e do desamparo provocado pelas próprias instituições, resultado de um país que há décadas, tenta se firmar como “grande nação” em um processo de desenvolvimento que teima em não se consolidar por diversos motivos, de ordem interna principalmente, e por outros reflexos externos, típicos de cenários globalizados afetados pela sucessão de diversas crises internacionais e conjunturas político-históricas.
Neste sentido, vivemos a triste realidade do aumento exponencial de uma legião de excluídos que somente são notados pelos questionáveis índices estatísticos, mas que, dificilmente conseguem mensurar, com exatidão, este contingente de desempregados, desalentados, vendedores de semáforos, trabalhadores informais e mesmo aqueles que, aparentemente exercem uma atividade com certa regularidade, como motoristas de aplicativos, vendedores autônomos, representantes e outros e que possuem, em comum, a condição de exclusão da proteção previdenciária, pela ausência da qualidade de segurado, pelo fato de não verterem contribuição para o regime previdenciário.
Esta dramática realidade vai ao encontro desta discussão, pois, muito embora pareça que este excluído, em muitos casos, consiga sua autossustentação, se amealhe com a conquista de alguns bens materiais utilizando-se dos poucos recursos auferidos pelo exercício de atividades sazonais ou até mesmo perenes, mas de baixa remuneração, resultante da informalidade, temos que, num futuro certo, porém, de momento incerto, poderá contar apenas com a proteção conferida pelos sistemas da saúde e da assistência social, neste último, caso cumpra os referidos requisitos legais.
O que se observa é uma contínua migração dos segurados, contribuintes do sistema da previdência social para a informalidade, inchando um conglomerado de pessoas invisíveis, cada vez maior, e de futuros necessitados que, em algum momento de suas vidas, restarão por contar apenas com a sorte, em situação de extrema vulnerabilidade, em paralelo ao exemplo hipotético dos condutores às margens daquela estrada, a espera de um milagre, estejam eles em maior ou menor situação de miserabilidade.
Assim, necessária a defesa dos direitos sociais, como forma de garantia do exercício do primado do trabalho, o que possibilita a existência da pessoa com dignidade e em gozo do seu bem estar social, valores sobre os quais assentam nossa Carta Constitucional, chamar especial atenção para a derrocada destes direitos sociais e, portanto fundamentais, capitaneada pelo executivo através da edição de inúmeras medidas provisórias, inclusive utilizando-se de normatização infralegal com a sucessiva edição de portarias, resoluções e instruções utilizadas para obstar direitos da seguridade social, conhecidas minirreformas criativas, porém, igualmente perniciosas.
Na mesma esteira, afugentando os direitos sociais, o legislativo cada vez mais omisso e subserviente, destinatário dos mandados constitucionais de proteção social, afastando-se do seu dever de legislar e conferir plena e ampla proteção social à toda a população, renega o que seria o seu protagonismo, em troca de afagos e do recebimento de outras vantagens, em franco aliciamento pelo executivo, seja na farta distribuição de cargos e através de outros incentivos, tudo isso, em nome da fantasiosa escassez de recursos para a proteção social e do cuidado com a economia, talvez em melhor leitura seria o cuidado com a manutenção da anomia.
Já o Judiciário, última ratio, e tábua de salvação do sistema de freio e contrapesos idealizado por Montesquieu, politizado, quase sempre proferindo decisões díspares e equidistantes do que deve ser feito e do que pode ser feito, transforma, invariavelmente, a tutela das garantias sociais em verdadeira loteria, perde aqui, ganha ali, aquele tribunal entende assim, já este, de outra forma, alimentando, com isso, o próprio ordenamento com a malfadada insegurança jurídica, com decisões vistas e revistas, posicionamentos que então seriam já pacificados mas que vão e voltam, dependendo de quem bate à sua porta e da composição política dos muitos plenários, que acabam por tolerar as inúmeras aventuras inconstitucionais tanto do legislador quanto do executivo, quando o assunto deveria ser aferido com vistas à garantia de plena proteção social.
Depois deste breve olhar sobre parte da atual e precária conjuntura social e institucional, em completo descompasso com a proteção securitária conferida pelo Constituinte, projeta-se um futuro sombrio e de grandes incertezas quanto à possibilidade de guinadas positivas, mas que certamente, produzirá uma sociedade de miseráveis, com grande dificuldade de acesso aos benefícios básicos de natureza previdenciária e, principalmente, aos benefícios assistenciais, todos nivelados pelo salário mínimo, o de menor valor cambial na América do Sul, só superior ao da Venezuela.
De volta ao cerne desta discussão, o critério objetivo que determina a presunção de miserabilidade, requisito para a concessão do BPC é, sem dúvida, fator que acentua a ineficácia da proteção aos necessitados, servindo como variável alienígena à detecção da real condição de vulnerabilidade no caso concreto.
Ainda que a adoção do critério objetivo tenha sido mitigada pelo próprio STF, como critério autônomo para a determinação de concessão de direitos subjetivos, como no caso do BPC, devendo serem analisadas demais circunstâncias em cada caso, não foi editada súmula ou determinada, de forma expressa, a vinculação das decisões de todo o Judiciário ao entendimento pacificado.
Em afronta ao entendimento do Tribunal Supremo, cotidianamente, diversas fundamentações são utilizadas em decisões monocráticas e, até mesmo colegiadas, para o deferimento de concessão ou cessação de benefícios, especialmente do BPC, ensebadas nesta retórica de contrariedade ao critério de renda máxima per capita auferida pelo grupo familiar.
Neste sentido, alguns tribunais já sedimentaram hodierna jurisprudência de que a miserabilidade deve ser comprovada por outros requisitos subjetivos que demonstrem a vulnerabilidade socioeconômica do necessitado, mantendo o critério objetivo de renda máxima do grupo familiar como fator coadjuvante.
A própria TNU (Turma Nacional de Uniformização) editou a Súmula 11:
“A renda mensal, per capita, familiar, superior a ¼ (um quarto) do salário-mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20, § 3º da Lei nº. 8.742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante”. (BRASIL, 2004).
Também, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, pacificou: “Renda per capita familiar não pode ser único critério para concessão de benefício assistencial”. (BRASIL, 2016).
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) concedeu, no final de agosto de 2016, benefício assistencial a um morador de Três de Maio (RS) de 68 anos por entender que ele e a esposa não têm condições de sustentar suas necessidades básicas. Segundo a 5ª Turma, ainda que o casal tivesse renda familiar per capita superior a um quarto do salário-mínimo, requisito legal para a concessão, o Supremo Tribunal Federal (STF) flexibilizou o entendimento, reconhecendo que cabe aos magistrados decidirem caso a caso depois de verificarem a situação e as condições reais do requerente.
Nesse processo, o idoso e a mulher, que é aposentada por invalidez, sobrevivem com um salário-mínimo. Conforme o laudo socioeconômico, eles moram em uma casa de fundos de quatro peças, em boas condições.
Quanto à aferição da condição de miserabilidade, a julgadora ressaltou que o Supremo Tribunal Federal (STF) relativizou o critério estabelecido em lei de um quarto do salário-mínimo per capita na família. “Diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, a limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade”, escreveu Taís em seu voto, reproduzindo jurisprudência do STF.
O homem ajuizou ação na Justiça Federal após ter o pedido de benefício assistencial negado administrativamente pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em primeira instância, o juízo concluiu que o grupo familiar não estava em situação de miserabilidade e negou o pedido.
Como evidenciado, o próprio serviço social corrobora, em muitos de seus laudos sociais, para que os julgadores tangenciem o comando sumulado pela TNU e o próprio entendimento pacificado pela Suprema Corte do país, indeferindo a concessão de benefícios assistenciais em primeira decisão monocrática, na maioria das vezes revertida, porém, após longa peleja judicial através do manejo de vários recursos que, por vezes, realizam o direito, mas tardiamente.
Quanto a esta necessidade cotidiana de se buscar reversão da decisão de cerceamento dos direitos sociais em grau de recurso ou mesmo nos tribunais superiores, oportuna a menção sobre a injustiça, pelo Mestre Ruy Barbosa:
“Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente”. (BARBOSA, 1997)
Um outro breve exemplo vale o registro, ou seja, de situação de vulnerabilidade qualificado pelo estado de miserabilidade, se considerar uma pessoa idosa, acima do limite mínimo de 65 (sessenta e cinco anos) de idade, auferindo renda mínima, mas acima do valor máximo per capita de ¼ do salário-mínimo, ou mesmo de ½ salário-mínimo, sendo toda a remuneração utilizada para gastos com medicamentos, o que é fato notório e corriqueiro, em grande parte da população idosa acometida pelas doenças típicas da idade avançada, traduzindo o estado de miserabilidade independentemente do valor auferido superar o famigerado teto remuneratório.
A efetivação do direito social deve ser imediata. O vulnerável precisa do socorro emergencial no momento do pleito, pois, as condições e circunstâncias pessoais são altamente voláteis e a falta de precisão do critério de mensuração quanto à vulnerabilidade social ou econômica podem representar rápida mudança do quadro analisado, em muitos casos, determinados, até mesmo, pela morte do desamparado.
Neste diapasão, necessário socorrer-se à filosofia jurídica e ao utilitarismo preconizado por Jeremy Bentham em sua teoria basilar e que deveria ser orientadora para a aplicação das políticas públicas:
O princípio da utilidade reconhece esta sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da felicidade através da razão e da lei. Os sistemas que tentam questionar este princípio são meras palavras e não uma atitude razoável, capricho e não razão, obscuridade e não luz. (BENTHAM, 1974, p.9)
O Direito não tem razão de ser, se for inútil. Para tanto, toda regra deve ser ponderada e mitigada pelos princípios de razoabilidade, proporcionalidade e principalmente, deve viger em estrita consonância ao meta-valor norteador da Carta Política de 1988, o da dignidade da pessoa humana, axioma sobre o qual estão ancorados todos os demais princípios constitucionais, de forma a exercer plenamente sua utilidade, garantindo o direito no caso concreto.
A Lei Orgânica de Assistência Social estabelece no § 3º do artigo 20 o critério objetivo de miserabilidade para deferimento ou indeferimento da concessão do Benefício de Prestação Continuada, in verbis:
Na esfera administrativa, somente com o preenchimento do critério objetivo de renda máxima do grupo familiar, é que a autarquia previdenciária entende que o postulante faz jus à concessão do benefício assistencial – BPC.
Em simetria, revela-se necessária a análise da problemática sob o prisma do princípio da isonomia, entabulado pela igualdade material, para afastar a generalidade e abstratividade da lei, preponderando a particularidade do caso concreto e a equidade, com as quais se deve decidir sobre a concessão de direitos sociais.
Nunca é demais lembrar que a proteção social, conforme determinada pelo Constituinte Originário infere direito fundamental, cujo princípio reside na plenitude de proteção da pessoa em momento de vulnerabilidade socioeconômica ou sinistros do cotidiano que causem incapacidade ou restrições que não se limitem à condição de mera sobrevivência, mas de garantia da dignidade e do bem estar social.
Dito isso, a mera posse de bens ou detenção de direitos que não traduzem liquidez imediata, ou ainda, a percepção de renda familiar, por si, não pode descaracterizar o estado de necessidade, miserabilidade ou hipossuficiência da pessoa em estado vulnerável, cuja proteção social deve ser garantida de forma plena pelo Estado, em consonância aos valores do bem estar social e da dignidade da pessoa humana sobre os quais foi erigida a Constituição de 1988.
O tripé protetivo, denominado Seguridade Social, deve abarcar e proteger a todos, indistintamente, de forma a consolidar o princípio da universalidade da cobertura e do atendimento e para a concretização da segurança social, garantia esculpida do art. 6º da Magna Carta de 1988, vale dizer, o escudo securitário deve garantir que nenhuma adversidade ou situação determine vulnerabilidade, incapacidade laborativa ou doença capaz de retirar ou mitigar os valores do bem estar social e da dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, aferindo-se a vulnerabilidade circunstancial, no momento e no caso concreto, deve-se conferir proteção social para todos, como forma de elidir as consequências do sinistro ou infortúnio social a que estejam expostos, temporariamente ou de forma perene.
Para tanto, precioso pontuar alguns conceitos de vulnerabilidade:
Vignoli (2001, p. 2) compreende vulnerabilidade como “a falta de acesso às estruturas de oportunidade oferecidas pelo mercado, estado ou sociedade, apontando a carência de um conjunto de atributos necessários para o aproveitamento efetivo da estrutura de oportunidades existentes”.
Busso (2001) considera a vulnerabilidade como “a debilidade dos ativos que indivíduos, famílias ou grupos dispõem para enfrentar riscos existentes que implicam a perda de bem estar”.
Em simetria, Katzman (1999) apresenta um conjunto de ativos que considera necessários para o aproveitamento efetivo da estrutura de oportunidades existentes e como a debilidade destes pode impedir ou deteriorar situações de bem-estar.
Caroline Moser (1998), apreende este tema pela “relação entre disponibilidade dos recursos materiais e simbólicos dos atores e o acesso a estrutura de oportunidades do meio em que vive, cujo descompasso torna-se empecilho à ascensão social desses mesmos atores”.
Objeto desta pesquisa, o estudo dos requisitos de aferição da miserabilidade e que podem determinar a vulnerabilidade socioeconômica do necessitado, devem ser norteados pela diferença conceitual entre presunção absoluta de miserabilidade (critério objetivo) e estado de miserabilidade (critério subjetivo) de forma a conferir plena e efetiva proteção aos necessitados em momento de extrema adversidade, independentemente dos critérios técnicos e teóricos que possam presumir o direito de acesso a esta proteção.
Assim, diante da fragilidade em que se encontra a seguridade social, desarrumada e descaracterizada pelas sucessivas edições e reedições de diversas legislações esparsas, normas infralegais e dispositivos que somente dificultam a realização do direito social, a proteção securitária e a efetivação desta garantia constitucional, urge a necessidade de realização de uma reforma de qualidade deste amplo sistema constitucional de proteção social que deveria passar, necessariamente, por uma profunda e exauriente discussão envolvendo os representantes da sociedade, sob orientação e coordenação de estudiosos do sistema securitário, o que, na melhor das hipóteses não deve ocorrer em um futuro próximo, infelizmente.
Logo, em suma, inviável, desproporcional e desarrazoado imprimir barreira objetiva na análise de acesso a benefício assistencial, de evidente natureza alimentar, existencial e de nítida hipossuficiência, adjetivos vistos àqueles invisíveis em estado de vulnerabilidade, ou, melhor dizendo de exclusão social, um cenário indesejado e sequer planejado no horizonte de 1988.
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[1] Mestrando e Especialista em Direito Previdenciário. Professor Universitário nos Cursos de Pós-graduação da Unifenas/MG, Unisal/SP, Escola Mineira de Direito – EMD, Faculdade de Direito de Varginha – FADIVA/MG e Faculdade de Ciências e Tecnologias de Campos Gerais – FACICA. Escritor, Publicista, Pesquisador, Advogado em Minas Gerais e São Paulo. Consultor e Parceiro no Escritório “Advocacia Especializada Trabalhista & Previdenciária”.
[2] Mestre em Direito pela FDSM. Pós-graduado em Direito Previdenciário pela EPD/SP. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professor Universitário. Professor de cursinhos preparatórios. Escritor. Conselheiro da 23ª Subseção da OAB/MG. Advogado em Minas Gerais. Membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica. Integrante do comitê técnico da Revista SÍNTESE de Direito Previdenciário.