Sabe-se que o pacto nacional federativo elegeu o regime democrático como uma de suas diretrizes mais importantes, inspirando toda a sociedade, gerações, programas, pautas, enfim, tornando a participação popular algo de extrema relevância.
Também, acolheu o sistema brasileiro o constitucionalismo do bem-estar, seguindo tendência mundial do pós-guerra ao eleger a dimensão normativa constitucional como a programação de funcionamento estatal e social, ou seja, na Constituição é que se condensou um agigantado programa de condução social, bem como uma generosa programação de futuro.
Por certo, nestes especiais trajetos de condução da sociedade, premissas outras como cidadania, inserção, integração, debates, representatividade direta e indireta, sufrágio universal, presidencialismo, direitos sociais, princípios, tripartição de poderes, solidariedade, dentre outras, colorem sobremodo o país, sobretudo pela multiplicidade, diversidade e complexidade dos relacionamentos dos atores da sociedade.
Assim, de apurada complexidade o ambiente brasileiro por várias óticas e segmentos, sem diminuir ou desprezar as escolhas preteritamente eleitas na programação firmada de 1988, um marco, a perspectiva da cidadania frente a duros períodos de outrora.
Em cenário atual, vive-se um árduo processo eleitoral, com extremadas posições, divisões ideológicas, efusivo e controvertido ativismo judicial, império da fake news, enfim, terreno esse que traz amostras da caminhada democrática em tempos digitais, mas em um solo social complexo e heterogêneo apto a produzir efeitos sociológicos dos mais diversos.
De todo o modo, é a excelência democrática, ou seja, o que deve prevalecer é a escolha direta da maioria da população eleitora, aqui a escolha feita há muito por todos, razão de que os ideários da democracia merecem profundo respeito, observância e proteção institucional.
Inobstante a vigente efusão do período eleitoral, a bem da verdade, pautas e temas de grande relevo se viram divorciadas do processo, vale dizer, a revelia dos programas de governo em todos os níveis e esferas, relegando a outros e incertos momentos, quem sabe o seu enfrentamento.
Dentre estas, a pauta previdenciária.
Fácil perceber que durante todo o conturbado trajeto eleitoral, não se viu a exibição de ideias, propostas, soluções ou qualquer programação de enfrentamento desta temática a ser debatida e construída coletivamente, a fim de que pudesse colocar o sistema previdenciário brasileiro também como centro das discussões.
E o momento era esse!
É que do mesmo modo de que o sistema social nacional ser adjetivado de alta complexidade, na mesma intensidade o previdenciário, vale dizer, um dos mais complexos do mundo, contudo abrangente, solidário e acima de tudo, genuinamente protetivo.
Neste sentido, incontroversa as constantes e recentes alterações legislativas, notadamente àquela advinda da promulgação da Emenda Constitucional n.103 de 13 de novembro de 2019, aliás, alvo de várias ações diretas de inconstitucionalidade (ADINs) perante a Suprema Corte. Portanto, sequer esta grande novidade normativa está dirimida em definitivo e consolidada no sistema jurídico.
Como se não bastasse, problemas outros e diários em que os pilares de bem-estar, solidariedade social, dignidade, eficiência e outros estão distantes de concretização, enraizados tão somente na abstração normativa, à revelia do dia-a-dia dos cidadãos que perfazem o sistema brasileiro, vale dizer, filiados, inscritos e autênticos contribuintes.
Judicialização excessiva no campo previdenciário, enormes filas na análise de benefícios pelo INSS, demora na análise das aposentadorias; mau funcionamento do sistema; greve e ausência de servidores, são alguns dos notórios problemas vivenciados dia após dia pelos trabalhadores brasileiros, aliás, todos contribuintes do sistema.
Aqui o rápido registro de alguns dos vários percalços vividos pelos filiados ao sistema previdenciário dos últimos tempos, sendo mais do que justificada a inserção da pauta previdenciária em rota eleitoral, a fim do público-alvo compreender a programação de melhorias e aperfeiçoamento do sistema.
No contexto da Previdência Social encontra-se também um abrigo constitucional que visa entregar a Justiça Social.
Wladimir Novaes Martinez em singular lição registrou que:
“É a técnica de proteção social que visa propiciar os meios indispensáveis à subsistência da pessoa humana – quando esta não pode obtê-los ou não é socialmente desejável que os aufira pessoalmente através do trabalho, por motivo de maternidade, nascimento, incapacidade, invalidez, desemprego, prisão, idade avançada, tempo de serviço ou morte – mediante contribuição compulsória distinta, proveniente da sociedade e de cada um dos participantes”.
Wagner Balera, catedrático da PUC/SP, contextualiza a cobertura e o atendimento previdenciário do seguinte modo:
“A todos é reservado igual lugar, aquele que lhe confere cobertura e atendimento segundo a respectiva necessidade, na estrutura institucional da proteção social. Eis a razão de termos afirmado que a universalidade se constitui na específica dimensão do princípio da isonomia (garantia estatuída no art. 5º da Lei Maior), na Ordem Social. É a igual proteção para todos. São dois os modos pelos quais se concretiza a universalidade. De um lado, ela opera implementando prestações. De outro, ela identifica os sujeitos que farão jus a essas prestações. A universalidade da “cobertura” refere-se às situações da vida que serão protegidas. Já a universalidade do “atendimento” diz respeito aos titulares do direito à proteção social. Todas as pessoas possuem tal direito”.
Mesmo transpassado todo este momento intricado das eleições, por certo que perdeu-se a oportunidade de bem aprimorar a pauta previdenciária em todo este democrático trajeto, o que não desnatura sua relevância, observância e necessidade imperiosa dos demais segmentos da sociedade perseguir seu aprimoramento por outros modos.
Aqui um singelo debate via sintética reflexão a respeito, trazendo à lume a indesejada omissão desta pauta em toda a jornada eleitoral atualmente vivida, na contramão do que o sentimento constitucional programou e o modelo democrático determinou.
Sérgio Henrique Salvador
Mestre em Direito pela FDSM. Pós-Graduado pela EPD/SP e PUC/SP. Professor Universitário (graduação, pós-graduação, cursinhos preparatórios e extensão/atualização jurídica). Professor titular do Direito Unopar (Itajubá/MG). Coordenador Acadêmico da Pós-Graduação em Prática Previdenciária da Escola Mineira de Direito (EMD). Escritor com mais de 15 livros publicados em várias editoras. Ex – Conselheiro da OAB/MG (23ª Subseção). Integrante do Tribunal de Ética e Disciplina (TED) Regional da OAB/MG. Advogado em Minas Gerais. Membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica. Integrou a comitiva de pesquisadores brasileiros no “I Congresso Internacional de Seguridade Social” da Faculdade de Direito de HARVARD (EUA) em agosto de 2019.